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O Colosso de Rhodes

  Entre julho e agosto daquele ano, qualquer um que circulasse pelos arredores do Castelo, desde o Museu de Belas Artes até o Tribunal da Justiça Eleitoral, teria a desfelicidade de encontrar a velhinha em questão. “Desfelicidade” não porque fosse velha e, certamente, não por desgosto a senhora – que tão mal não fazia a ninguém – mas pelo súbito questionamento ao termo humanidade com o qual se depararia um que fosse, assim,  afeito a questionamentos. O andar vagaroso acusava a debilidade do corpo, que se mantinha arqueado numa rigidez tão plena que nos fazia imaginar os ossos petrificados na forma de parábola tal que o olhar da mulher não poderia subir acima dos ombros de um que alcançasse pelo menos um metro e setenta de altura. Mas era o aspecto ímprobo das roupas da senhora que dava a tonalidade miserável e a tez anti-social da personagem. De fato, abuso seria até mesmo chamar “roupas” àqueles trajes, que se constituíam de dois pedaços de tecido – possivelmente

O Guarani

  O barulho do ar que escapa - como resultado da descompressão que regula o funcionamento do ônibus quando este pára e abre as portas – chama atenção do pedestre que segue distraído. Entram os últimos e o veículo fecha as portas enquanto o ônibus permanece parado devido ao engarrafamento que enfileira dezenas de automóveis naquela Rua do Passeio, já quase em frente a Escola de Música da UFRJ. Uma panorâmica: da calçada, é possível ver toda a extensão lateral do veículo, com suas janelas dispostas de modo a convidar diálogos soturnos entre os passageiros que habitam tais posições e os outros que esperam no ponto. O olhar fixo de um garoto na parte de trás do ônibus chama atenção: ele recai sobre a figura de uma senhora que, com os braços cruzados, mantém firme a bolsa pendurada em um deles. A mulher ignora a presença do menino que se faz sentir cada vez mais a medida que a atenção do espectador delineia a cena. O menor, preto e em cujos trajes (ainda que em relação apenas àqu

Anamorfose

Havia ela escrito esse texto; um texto tão particular (e ao mesmo tempo tão geral), que cada um que lia tinha impressão de tratar-se de história totalmente distinta daquela que lhe havia contado o amigo, tendo lido o texto alguns dias antes. Mas não era no tempo que a diferença se estabelecia e senão no espaço. Duas pessoas que houvessem lido o texto ao mesmo tempo, de pontos diversos no espaço, haveriam tido razão de uma outra novela; ou de um poema; quem sabe, ainda, de uma nota de rodapé; poderia ser que lessem as duas uma mesma coluna jornalística e que, no entanto, cada notícia relatasse o mesmo acontecido numa cidade inteiramente outra. Seria, então, por haverem lido aquelas palavras que chegariam a conclusão de sua própria existência no mundo, uma vez que lendo distintas imagens diante de um mesmo pedaço de papel preso a uma parede, seriam, assim, depoentes da divergência essencial em que se estabelecia aquela experiência. Sentiriam como se estivessem também sendo

Pietra e a representação da vontade

Caminhavam de mãos dadas mãe e filha pelo jardim, quando a menina perguntou: "Mãe, a lagarta gosta de queimar a gente?" - Não filha, ela queima pra se defender - respondeu a mãe e ficou a criança em silêncio por alguns segundos, mas não porque estivesse satisfeita com a resposta que recebera, pelo contrário. Para ela seria impossível compreender a razão da incompatibilidade entre a defesa da qual era praticante a lagarta e um gosto possível pelo qual se tivesse, então, motivado. - Ela não gosta, então? - perguntou esperando a confirmação da resposta que a mãe deixou para ela subentendida. A mãe, então, percebeu o problema que tinha em mãos: não tinha a filha suficiente intimidade com o tema para supor da primeira resposta uma separação evidente entre vontade e necessidade. Convenientemente, havia a menina lhe entregue a chance de ali concluir, fazendo-a aceitar que entre a ação e a vontade da lagarta não existia mais que uma relação de mera circunstância e, então

A casa de Heráclito

Aquele pó louco na manhã confusa fazia sua garganta esmerilhar-se dentro do pescoço. O banheiro estava em obras. A poeira que ele engasgava era um pedaço da antiga casa pulverizado pela força bruta de um martelo sob a mão de um impiedoso capataz. Levantara e fora até a cozinha em busca de um copo que consigo trouxesse água e alguma paz às paredes laringíneas de sua frágil goela. Mas também os copos se ressentiam de uma espessa camada daquele pó que antes houvera sido a parede que separava o banheiro de um  hall   que corria até a sala. Levou o copo à pia e abriu a torneira. Lavou-se o copo sozinho com a água que descia e enxugou-se por um abrupto saculejo, como numa nota da beleza prática e engenho que na atribuição de mérito à gravidade, fazia separar gotas de água de vidro e, onde antes a poeira se encostava, descansava agora apenas um estreito véu de umidade que calava também, com suma delicadeza, a aridez e aspereza da mão que segurava. Levou o copo ao filtro e en

Retrato de Corte

Consta n’algum livro de autoria desconhecida incumbido de narrar a história, já há algum tempo incélebre, de um ilustre membro da corte inglesa durante o século XVII, que o tal cavalheiro contratara um renomado mestre da pintura flandrina para compor-lhe um retrato. E, porque fosse muito feio, pediu-lhe o contratante que retratasse a imagem de sua glória, a despeito das imperfeições que o tempo havia cunhado ou que a genética lho tivesse imposto, corrigindo sobre a tela as marcas de sua fealdade, de modo que na representação cumprida figurasse a aparência de um belo homem. Aliás, não há muito algum espirituoso autor houve publicado um artigo, menos de valor histórico que anedótico – justiça seja feita -, onde se refere a esta mesma história do livro aqui em nota como fosse a primeira cirurgia plástica narrada e de alguma forma documentada pela pintura. E cita esta passagem em que declara o aristocrata da história: “Que Deus tenha-me atado a este fardo, que me tenha esculpido e

Gentileza gera gentileza (SQN)

Entrei no ônibus com uma sacola na mão. Procurava pelo dinheiro na carteira aberta, um pouco confuso, a considerar que o veículo em movimento não me ajudava o equílíbrio e nem tão pouco a pressão que me fazia, com a atenção intermitente voltada a mim, o motorista, que deveria recolher o dinheiro e dirigir ao um mesmo tempo, enquanto um senhor num banco estrategicamente (ainda que a estratégia permaneça a mim desconhecida) isolado ao lado da roleta murmurava alguma coisa em minha direção. Entre os murmúrios distingui a sentença: “Passa a roleta, procura o dinheiro e depois volta pra pagar.” Desconsiderei, no entanto, a sugestão. Não apenas porque julgasse desnecessário – e uma vez que eu passasse a roleta, teria que esticar o braço até o último centímetro para dar o dinheiro ao motorista, que deveria retorcer o pescoço e recolher a passagem com apenas uma mão no volante e o carro, provavelmente, em movimento – mas também porque a posição que me ocupava na procura do dinheiro,